Questão de sorte

Ter ou não ter sorte nunca me chamou muito a atenção, por mais que seja assunto recorrente entre amigos e na rede social. E, de verdade, nunca parei pra pensar profundamente no assunto.
Na adolescência, as frases sobre sorte e destino acabavam, de alguma forma, encantando-me. Mas acreditar na sorte, no destino, parecia-me, antes, coisa de filosofandos e afins.
Mas semana passada isso mudou. Tive que pensar, e admito que de modo assustador, nesse lance de sorte/destino. E era pra ser uma simples venda de automóvel (ou quase isso).
Coloquei à venda um carro velho que foi da minha irmã e que, por razões bastante óbvias, vendeu-me baratinho. A marca, importada e nem um pouco bem-vista por aqui onde moro, e o modelo estranho do carrinho fez-me anunciá-lo na internet. Não tinha pretensões, diga-se de passagem, por se tratar de um senhor carro de 20 anos, amassado feito caneca de cego e que possui um lado de cada cor.
A surpresa começou pela rapidez no envio das propostas de compra. O anúncio publicado às 10 horas da manhã fez um verdadeiro sucesso em pouco mais de uma hora de exposição. E no dia seguinte, maravilhosamente, vendido.
Interessou-se por ele, quase que em estado de adoração, uma mulher de outra cidade das redondezas. Veio vê-lo em um dia e fechou negócio, vindo assinar os documentos e acertar o pagamento no outro.
Sorte - pensei eu - existe.
Todos os assuntos tratados e acertados, a (in) feliz proprietária do quase-carro entrou em sua recém-conquista e logo perguntou de uma sacola. Sacola? Que sacola? Roubaram-lhe a sacola de dentro do carro. Com dois pares de sapato e um celular. Esse, infortúnio da mulher: custara-lhe uma pequena fortuna e havia menos de um  mês.
A má sorte dela não acaba aí. Muito antes de chegar a comprar o carrinho, nasceu em uma família totalmente desestruturada; foi abandonada, levada a adoção, devolvida e passara a adolescência em uma casa abrigo. Perdera o emprego no mês anterior, o marido a deixara com duas crianças pequenas e agora, em uma cidade desconhecida (que por sorte era a minha), fora roubada.
Desespero. Procura na rua. Conversa com policiais. Tento acalmar a coitada como posso. Prometo-lhe um novo celular. E depois de umas três horas de boletins e chororôs, ela se vai, levando consigo um novo celular, um velho carro e sua carga de sorte.
Já no começo da noite, fui trabalhar pensando sobre todos os momentos infelizes da minha mais nova conhecida. E pensando em como a vida, às vezes, maltrata algumas pessoas. Ainda neste devaneio, meu celular (mais velho e com a tela quebrada - diferente do que acabar de presentear a (in)feliz) toca. Era a concessionária de uma rodovia local, querendo falar comigo. Logo em seguida, chorando e desesperada, a mulher compradora do quase-carro dizia-me, aos prantos, que o carro pegara fogo e ela estava sozinha e o celular não funcionara.
Não. Não é mentira. Parece, sim, conto de terror, piada ou dramalhão mexicano. Mas a mulher realmente não nasceu pra essa coisa de sorte.
Tive de levá-la a sua cidade, sem o maldito carro velho, com medo de que algum daqueles relâmpagos da noite chuvosa, acertassem-me em cheio, atraídos pela má sorte da minha então companheira de viagem.
Enfim, passou. E consegui demovê-la da ideia de comprar o carrinho -  o que me parecia muito sensato, mas que deu o que ver pra que ela concordasse.
Sei lá. Preciso saber se a transferência do valor que ela me pagou, e que devolvi, foi realizada. Mas temo pela resposta ao telefone, Tipo:
_ Oi. Sabe aquele celular que você comprou pra ela? Então, ela foi ligar pra você e ele
explodiu. Ela está no hospital e parece que, se tudo for bem, só ficará surda do lado esquerdo.
Credo!

PS. Não. A transferência não deu certo. Digitei a conta da sortuda errado. Outra pessoa mais sortuda que ela deve estar feliz por ganhar uns troquinhos de um desconhecido. Que sorte!

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